domingo, 22 de fevereiro de 2009

Nação Jurunense é tema de pesquisa

Com 66 mil habitantes,Jurunas ainda é bairro de parentes e amigos

Num domingo de janeiro de 1999, os compositores da Escola de Samba Rancho Não Posso me Amofiná estavam reunidos em torno de uma mesa no espaço lateral da escola. Entre músicas e cervejas, Pedrinho do Cavaco compunha uma canção para ser executada antes da entrada do Rancho na avenida. A letra dizia “pois o ideal de um sonhador/ é ver meu Rancho em primeiro lugar”, imediatamente o sambista foi orientado a trocar a palavra “sonhador” por “jurunense”. Houve consenso entre os músicos.

Foi nesse cenário de festa, alegria e muito samba que a pesquisadora Carmem Izabel Rodrigues, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFPA, chegou ao Jurunas, bairro que tem não só a maior Escola de Samba do Estado, mas também uma organização social que traduz bem a relação entre tradição e modernidade. Segundo Carmem, “a chegada do antropólogo ao lugar é como uma descoberta”, neste caso, o achado rendeu a publicação “Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e construção de identidades em espaço urbano”, editada pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, fruto de sua tese de doutorado, defendida em 2006. Carmem Izabel Rodrigues: moradores valorizam o lugar onde vivemCarmem conta que sempre gostou do carnaval e ressalta que esse foi um ponto fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, “sempre assisti às escolas e percebia nos desfiles oficiais uma diferença entre o Rancho, do Jurunas, e as outras. A presença forte dos moradores do bairro era o diferencial”. Ela explica que, no Jurunas, foi constituída a ideia de “nação jurunense”. Essa adjetivação aparece o tempo todo quando os moradores falam de si ou do bairro, logo se nota uma valorização extrema do lugar em que vivem. “Normalmente, quando se pergunta a alguém onde mora, a pessoa se limita a dizer o local, o nome da rua, mas se você pergunta ao morador do Jurunas, ele diz ‘eu moro no Jurunas, eu sou jurunense”, relata.
A pesquisadora fala que os moradores mais antigos, grande parte migrante ou filhos de migrantes, enxergam como um equívoco as pessoas que saíram do Jurunas para morar em lugares mais distantes. “Há famílias que nunca saíram desse espaço, que mudaram várias vezes de áreas mais problemáticas em busca de lugares mais centrais, porém sempre dentro do bairro”.

Urbanização estabilizou crescimento do bairro

O período de maior expansão do Jurunas se deu na metade do século XX, mais especificamente entre os anos de 50 e 60, quando o bairro duplicou seu número de habitantes, porém foi na década de 80 que ele chegou até a população que tem hoje, aproximadamente, 66 mil habitantes. “Da década de 80 para cá, não aumentou, pelo contrário, teve uma pequena diminuição em função da valorização dos imóveis. Graças à urbanização, o crescimento do bairro estabilizou”, analisa Carmem.
O bairro do Jurunas apresenta imagens distintas dentro e fora do seu espaço. As concepções interna e externa estão articuladas tanto no sentido de ser um bairro perigoso quanto no de ser um bairro festivo. No entanto, a violência é estrutural, não está só no bairro pobre, na periferia, mas sim em toda parte, inclusive nos centros. Para Carmem, as representações construídas a partir dos jornais contribuíram não só para a imagem da violência, como também para a imagem festiva. A violência é deixada de lado durante as festas. “Gostar de festas é um dos componentes dessa identidade jurunense, assim como gostar do movimento, de estar junto com os outros. O Jurunas é o bairro do encontro”, afirma a pesquisadora. No bairro, estilos musicais variados como o technobrega e o pagode convivem com o samba, que se mistura com formas musicais locais nos eventos festivos. “Mesmo nas festas, você percebe as diferenças de classe, as hierarquias, as relações de poder. Elas não são somente uma expressão lúdica, mas também um espaço de reflexão”, observa Carmem.

Tradição e modernidade

O Jurunas é um local onde modernidade e tradição residem no mesmo espaço. O grau de sociabilidade entre as pessoas atinge o nível típico de lugares periféricos ou de cidades do interior, Carmem chega a dizer que esse seria um bairro de parentes, vizinhos e amigos. Ao mesmo tempo, a modernidade se expressa a partir da apropriação da tecnologia e da dinâmica frenética dos bairros modernos. “O Jurunas não dorme”, acrescenta.
A antropóloga conta que, durante a pesquisa, trabalhou com o conceito de localidade, “acho que o Jurunas é uma comunidade no sentido dessa recorrência do conceitual mais tradicional, com laços primários em oposição à sociedade, porém uso muito mais a noção de localidade para articular o local que mantém a tradição e também interage com o global”, ressalta. A pesquisadora enfatiza que, nesse contexto, a identidade jurunense não é étnica, mas é, principalmente, uma identidade ligada ao lugar. Ela explica que esse elemento também faz parte da construção de identidade, logo, o termo “jurunense” remete duplamente à questão do local e ao aspecto lúdico das festas. Nesse sentido, a Escola de Samba Rancho Não Posso me Amofiná é como um pilar dessa identidade e dessa característica festiva dos moradores do bairro.
Quanto às correntes teóricas estudadas para analisar o Jurunas, Carmen diz que a teoria clássica sociológica da Escola de Chicago, de algum modo, via separadamente tradição e modernidade, “o sujeito, ao chegar à cidade, seria afetado pelo ritmo da metrópole moderna, tornando-se mais laico e afastado dos laços primários, da família, dos parentes, dos vizinhos, enfim, ficaria mais anônimo em sua individualidade”. Em oposição a esse quadro de individualismo, a pesquisadora afirma que, em bairros como o Jurunas, esses laços permanecem ainda que as pessoas convivam também com a modernidade, logo, elas têm diversas identidades articuladas em variados contextos.
“O que já é bastante claro para as teorias sociológicas e antropológicas de hoje é que essa modernidade não destrói os laços primários. Eles são modificados, transformados, mas permanecem. Não se pode pensar, por exemplo, que na modernidade as pessoas se tornaram mais laicas, menos religiosas, pelo contrário, hoje, o número de procissões é impressionante”, ressalta Carmem.

Matéria originalmente publicada no jornal Beira do Rio.